Nunca havia precisado
entrar em posto de saúde pública em São Paulo. Não quero me vangloriar, porque
não é o caso. Até recentemente tinha alguma condição de pagar por um plano
particular, mas por decisões pessoais (que cabem melhor em outro momento) abri
mão deste benefício e restou o tão difamado “sistema público de saúde
brasileiro”.
O atendimento mesmo
através de planos particulares nunca foi dos melhores: já conheci profissionais
muito ruins, consultas cuja duração não passou de três minutos e muita espera
ao ponto de me sentir desrespeitada.
Mas ainda assim, não
havia sentido tão de perto o que é o abandono. Para completar a experiência
negativa, minha noção de sistema público era um tanto diferente, já que vim de
uma cidade pequena, com razoável organização dessas entidades para os padrões
brasileiros.
A estranheza começa
pela estrutura, ou pela falta dela: móveis velhos, tudo parece improvisado;
papéis se espalham e se amontoam pelos cantos; computadores lentos e
desatualizados na época da agilidade e da pressa; arquivos de papel,
denunciando a burocracia que permeia toda a mentalidade do sistema público
nacional.
E tem as filas. Para tudo
há fila. Para pedir informação, para pegar remédio, para ser atendido. Na maior
parte das vezes a resposta é pegue uma senha, entre na próxima espera e
aguarde.
E pessoas. Essas foram
as mais intrigantes.
À primeira vista,
parece que estão sobrando, perdidas e amontoadas como os papéis nos cantos, fora
de harmonia. Mas então se percebe certo ritmo, certa coreografia. Parece que cada
um tem seu papel ali. A sensação final é que existem regras de convivência sim,
e elas só são claras para os participantes e integrantes deste jogo.
Mas tudo é muito
estranho. E ineficiente. Bem ineficiente.
Neste dia, havia uma moça
passando mal. Seus olhos, bem vermelhos e lagrimejantes, quase não ficavam abertos.
Seu corpo estava jogado sobre o banco de madeira. A colega de trabalho que a
acompanhava aguardava na fila(!!!) para pedir informação.
Só depois do pedido desesperado
da moça-jogada é que ela toma uma atitude e fala com o atendente, passando na
frente de outra pessoa.
Advinha a pergunta do
atendente: “ela tem carteirinha do SUS? Senão, eu preciso fazer uma antes”.
Enquanto isso, a moça-jogada passava mal.
Essa tal carteirinha
não é nada mais que um código de barras que reduz cada pessoa a uma sequência numérica.
Nada mais sintomático que a necessidade de reduzir pessoas a números. Retirar a
personalidade talvez tenha sido a maior engenhosidade deste sistema. Números
podem morrer, é só acrescentar mais uma casa, que outro nasce em segundos. Nada
mais emblemático que a despersonificação de cidadãos.
Voltando à
moça-jogada, acharam o seu bendito número perdido na bolsa e ela seguiu para a
próxima etapa. Outra espera. Outro descaso.
A moça-jogada, que foi
cambaleando pelo corredor, encontrou uma enfermaria. E mais uma cadeira. Não havia médicos, não havia instrumentos, não
havia atenção. Tudo que ganhou, após mais longos minutos de espera, foi ter sua
pressão medida.
“Você fica aqui que
vou chamar um médico”. Foi a instrução ouvida pela única enfermeira no local. A
senhora-de-jaleco saiu para o fundo do corredor carregando uma chave. A
moça-jogada que mal tinha forças para reclamar, agora se jogava sobre uma
cadeira de plástico branca-encardida.
Meia hora depois a
senhora-de-jaleco retorna. A mesma chave na mão. Retorna pelo mesmo corredor. Entra
na sala no final do corredor, na frente. A sala que sempre esteve aberta. Fala
com o médico que sempre esteve lá. Ele, um pediatra, é chamado para atender a
moça-jogada na cadeira encardida.
Não pude ver seus
olhos. Se a moça-jogada olhou com alívio a chegada de alguém. Ouvi a voz do
médico através da porta aberta. Não era possível ouvir a outra voz de tão
fraca. Ouvi frases como "dói aqui, você sente isso, espera aqui".
E assim, mais de
quarenta minutos depois de sua entrada, a moça-jogada foi se jogar numa cadeira
reclinada estofada de cor preta. Todo esse tempo para receber um comprimido
branco e um copo de água num copo plástico transparente. “Fica com o copo”, diz
a senhora-de-jaleco (agora) prestativa e acatando a decisão (e a
responsabilidade) do outro. “Ainda preciso te dar ...”
As palavras se
perderam no ar. Sai dali. O meu assunto estava encerrado, pelo menos por ora.
Na minha frente, a
fila inicial se estendia ainda mais pela porta de entrada. Eu desviava de mais
olhos, com medo que encontrasse mais olhos-vermelhos e moças-jogadas. Eu só
sentia o desespero de saber o que é estar mal, de sentir medo que a sensação se
agrave, de precisar de alguma coisa que faça seu corpo reagir. De pedir ajuda e
encontrar o vazio. Enfim, senti medo de ser eu a tal a moça-jogada.
Talvez o medo tenha sido maior ainda. Senti o medo de depender de pessoas tão anestesiadas pela doença e
dor que não conseguem reagir. Não conseguem sair deste ritmo lento e estagnado de
agir. Desta burocracia inata. De apenas respeitar regras internas que
claramente não funcionam em detrimento do respeito ao ser humano.
Fiquei assustada com a
apatia. Com o descaso. De ver tanta falta de condição. De pessoas incapazes de
olhar nos olhos vermelhos da moça-jogada e encontrar a dor. E reagir a isto. Ou
simplesmente fazer o seu trabalho.
Aprendi que não se
deve ir a posto de saúde em busca de pronto-atendimento. Ali, pessoas apáticas
aprenderam que papéis e números são mais relevantes que pessoas. Afinal, não se
pode esperar mais que abandono destas pessoas que já abandonaram a si mesmas.
Me pergunto ainda onde isso começou. Será que talvez essas pessoas apáticas não foram abandonadas antes por um sistema ineficiente, burocrático, desigual?
O abandono de si mesmas como reflexo do abandono pelos outros. Aí, quem sobra na hora de recorrer em caso de dor e desespero?
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